quarta-feira, 17 de setembro de 2003

Jornalistas, pois então

Volto a escrever sobre jornalistas numa altura em que o tema incendeia paixões. Mais precisamente sobre um aspecto que já me levou a trocar umas ideias com o Abrupto e, agora, com o Mar Salgado - a alegada diplopia (aprendi uma palavra nova: «visão dupla», segundo o Houaiss) com que a esquerda e a direita são tratadas nos media.
1. O que me irrita particularmente é a ideia que circula com alguma insistência, nomeadamente nos blogues mais à direita, de que os jornalistas pendem sistematicamente para a esquerda e que, em conformidade, distorcem a realidade à sombra desse preconceito. Esta ideia revela, além de alguma desatenção face ao que é publicado, um desconhecimento razoável do que se passa no interior dos media. Na verdade, nas últimas duas décadas, as redacções foram invadidas por hordas de jovens jornalistas maioritariamente desinteressados da política. Muitas deles têm uma atitude de total indiferença perante o fenómeno, outros olham-no com desconfiança. Mas quase todos detestam os políticos e estão dispostos a levar aos limites essse criticismo. Há, é certo, os que se interessam por política, mas, ao contrário de um passado recente, as opções de esquerda já não serão maioritárias.
2. Quem escreve sobre estas matérias revela, igualmente, algum desprezo sobre o verdadeiro papel dos media. As expressões contra-poder ou quarto poder parecerão anacrónicas, mas, sob outras designações, são elas que ainda devem caracterizar decisivamente a actividade jornalística. Numa altura em que as correntes de direita estão no poder (em Portugal, na Europa, nos EUA) é natural que os media sejam vistos como estando alinhados com a esquerda. Dou um exemplo: na guerra do Iraque, o papel dos media é questionar, questionar sempre, as várias opções. Outro exemplo: no acidente do IC-19, o papel dos media é tentar ir mais longe que a própria investigação ao acidente. Porque aos media compete-lhes, não só investigar o acidente, mas também investigar quem investiga o acidente. Por muito que isso incomode os políticos. Terceiro exemplo: Durão Barroso diz que há mão criminosa nos incêndios. O papel dos media não é reproduzir acriticamente essas palavras, mas tentar perceber se têm correspondência com a realidade.
3. A fractura esquerda/direita é outro aspecto sobre o qual penso que existem alguns equívocos. Parece-me, de todo, absurdo colocar nos pratos da balança toda a esquerda contra toda a direita. Há blogues claramente fascistas (até a direita os denuncia, vide os escritos de Pedro Mexia), com apelos claros à violência, mas não conheço equivalência à esquerda. O que muitas vezes certos críticos dos media pedem é que se utilize a mesma bitola para a extrema-direita de valores nazis e para a esquerda que até já foi extremista mas se reciclou (facto que mereceria elogio e não a postura cínica que por aí se vê).
4. Última crítica, que isto vai longo. Por facilidade de argumentação, ou por mero efeito de estilo, nos últimos tempos, todas as opiniões têm de ser extremadas. Já ninguém crítica, toda a gente insulta. Por isso me indigno que se escreve que «os jornalistas apoiam a barbárie defendida pela esquerda». Barbárie? Não estaremos a depreciar a palavra? Os jornalistas, a esquerda? Não estaremos a generalizar em excesso?