domingo, 28 de setembro de 2003

Justiça para todos?

Tonou-se um lugar-comum, a propósito do processo Caso Pia, dizer que a justiça tem de ser igual para todos. Como se a educação fosse igual para todos, como se a saúde fosse igual para todos...
Acontece que, com a passagem do tempo, cada vez fica mais claro que a justiça não é, de facto, igual para todos.
Os recentes acórdãos do Tribunal Constitucional vieram confirmar um facto que muita gente já havia denunciado. O excesso de zelo com que certos agentes da justiça têm gerido este caso não se vê noutros processos. O atropelo sistemático das regras básicas da justiça, a que assistimos neste caso, não é a regra.
Mas não é só dentro do sistema de justiça que este caso está a ter tratamento de excepção (E não colhe o argumento de que se trata de um crime horrendo, que justifica um regime de excepção. A justiça, sendo igual para todos, tem a dever de a todos tratar de forma igualitária, de acordo com as molduras penais aplicáveis, obviamente).
Também, cá fora, o regime de excepção é preocupante.
Será normal que se façam sondagens de opinião pública sobre o desempenho do juiz? Será normal que se façam sondagens questionando a culpabilidade dos arguidos? Em democracia tudo pode ser questionado, argumentar-se-á. Mas não será de uma total irresponsabilidade, a roçar o crime, perguntar a um vulgar cidadão, que não teve acesso ao processo, que nada percebe dos trâmites da justiça, se acha que o juiz agiu bem, se acha que os réus são culpados?
Terceira excepção: a manifestação de ontem. É claro que os abusos sobre crianças nos indignam a todos. É claro que o silêncio sobre esses abusos ainda nos deve indignar mais. Mas, neste caso, os crimes foram denunciados, está a decorrer uma investigação, a justiça, com eventuais erros, está a funcionar.
Não terá sido a manifestação de ontem uma inconcebível pressão sobre a justiça? Não visa ela criar um clima de pré-condenação de quem ainda nem sequer foi acusado?
E é claro que nem vale a pena falar dos agentes supostamente responsáveis que têm o dever de estar calados e que não cessam de opinar, de forma parcelar, induzindo opiniões, fazendo pré-julgamento. Isto começa no PGR e vai por aí fora.
Não. Neste caso, a justiça não está a ser igual para todos.
O facto de a maior parte dos envolvidos detidos serem figuras públicas (há arguidos que não são figuras públicas e até estão em liberdade...) não justifica que se quebrem as normais regras de serenidade e discrição que a justiça exige. Uma figura pública, ainda para mais se for da área da política, tem especiais responsabilidades. Mas não pode haver uma justiça para o zé da esquina e uma justiça para os notáveis.