segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Eu, o Pedro, o PS, o Saddam e a América (II)

Esclarecida, penso eu, a parte da conversa relativa à inutilidade da revelação partidária, vamos ao centro da questão.
Fui, desde a primeira hora, contra a intervenção no Iraque, mais devido ao que entendo deverem ser as relações internacionais, do que por causa do que estava em jogo. As armas de destruição maciça e eventuais conexões terroristas são, assim, aspectos secundários. Acho é que uma intervenção militar externa não constitui um modo aceitável de derrubar uma ditadura, ou, se quisermos, de democratizar seja o que for. Entendo que a democracia genuína pressupõe uma pré-etapa de autodeterminação - são os povos que decidem viver em democracia. Foi assim em Portugal, como foi assim na Europa de Leste, por exemplo.
No caso do Iraque, há ainda o aspecto religioso. Tratar o Islão à bala é fomentar o radicalismo. Considero preferí­veis outras vias - alguns países do magrebe ou a Turquia, por exemplo, têm lidado bem com este assunto. Nesses paí­ses, em que o Estado consegue alguma autonomia face à religião, desconto até algum autoritarismo, algum sacrifício dos direitos humanos. Encaro isso como uma etapa. Sempre me pareceu que os EUA também apostavam nesse via... até agora.
Já escrevi, e repito, que a via multilateral na questão do Iraque (leia-se, a via da ONU) estava longe de esgotada. As coisas tinham chegado a um ponto que, numa questão de meses, a comunidade internacional haveria de chegar a um consenso. Discordo totalmente da estratégia dos EUA de fragilizarem a ONU - isso é evidente e é anterior ao Iraque, eventualmente anterior a Bush. Uma coisa foi a guerra de palavras com a França em público, outra foram os bastidores, o modo como se conduziu o processo.
Considero, tendo tudo isto em conta, a intervenção americana totalmente ilegítima, pelo que não faria qualquer sentido aplaudir a prisão de Saddam. Se quiserem, aplica-se uma frase feita - em política, os fins nunca justificam os meios. Pormenor sem importância: o regime de Saddam já caíra há mais de sete meses, pelo que pouco haveria a comemorar. Não sei, sequer, se a captura de Saddam terá quaisquer efeitos na estabilização do paí­s.
Como a coisa já vai longa, apenas duas notas sobre o que escreve Pedro Mexia.
a) Os parágrafos que ele dedica à sua relação com a América... Comigo, é mais fácil: crí­tico um aspecto concreto dos EUA, sou anti-americano; sou contra esta guerra, sou pacifista. A sério: tenho um entendimento do mundo no qual a América terá sempre um papel preponderante (por todos os motivos...), mas integrada no chamado «concerto das nações». Não me parece pedir muito.
b) A candura com que aceita o que diz Bush - a Palestina, por exemplo - sem atender a que há uma contradição total com os actos. Candura que se transforma em cinismo quando analisa, por exemplo, as declarações da França na ONU.
Congratulo-me, apesar de tudo, pelo facto de o Pedro não ter enveredado pelo caminho da generalidade dos blogues de direita: a esquerda é acusada de traição por não festejar a captura de Saddam; é acusada de hipocrisia por aplaudir (veja-se os comentários às reacções do PS e de Jorge Sampaio).