sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

Grandes negócios, pequenas mentiras

Caro MacGuffin,
a verdade é que estou arrependido de ter feito negócio consigo. Não pelo negócio em si, que correu mal, mas porque, com o que escreveu ontem, liquidou de vez qualquer possibilidade de partilharmos uma perdiz desossada no Fialho, seguida de uma audição contida de Stephin Merritt, ou mesmo dos Lambchop, em dose dupla e muito, muito boa. Podíamos, eventualmente, tentar convidar a nossa amiga comum...
Acontece que o meu amigo não podia trair a família ideológica a que pertence e, por isso, conta as coisas a seu gosto, omite factos, treslê, confunde quem o lê... Mas, meu caro, não estamos a falar de armas de destruição maciça, coisa tão longínqua que nos permitimos opiniar sem risco próprio (que diabo, não somos iraquianos, nem árabes, nem coisa parecida...), mas sim do nosso dinheirinho.
Por exemplo, o meu amigo imagina-me ao volante de um Punto, de braço dado com Carvalho da Silva. Não sei onde foi buscar essa ideia. Presumo seja só má vontade. A mesma má vontade com que omite os principais problemas e as soluções que apontei para a nossa empresa comum.
Antes de prosseguir, queria só lembrá-lo de que a nossa fábrica chamava-se, de facto, Portugal, e que só usámos a marca Icily por causa de uma questão de patentes.
Para resolver o défice, o meu amigo decidiu optar pelas receitas extraordinárias. Vendemos, pois, património, numa altura de recessão. Belo negócio...
O meu amigo vem depois com a história do reinvestimento para a modernização e para o redimensionamento do quadro de pessoal. Esquece-se de que essa era a minha proposta desde o início. Sempre lhe disse que deveríamos ter investido mais na formação do pessoal, na diversificação da oferta, em melhores métodos de gestão. A tudo isso fez orelhas moucas.
Não, você só queria fazer «receitas extraordinárias» e recorrer ao outsorcing. Sempre lhe digo que desconfiei desde o início da segunda ideia. E bastou-me fazer umas perguntas à pessoas certas para ter a certeza - a tal empresa do outsorcing é de um primo seu - um velho hábito, este, de negociozinhos em família - e que, por acaso, segundo li nos Ecos do Alentejo, até está metido naquela história obscura do financiamento da coligação PSD/CDS nas últimas autárquicas de Évora. Mas, enfim, não desviemos as atenções do essencial, até porque isso são coisas que acontecem todos os dias...
Mas, sinceramente, o que mais me chateou foi mesmo a omissão, que só posso tomar por deliberada, da sua principal proposta para a resolução do nosso défice.
Tínhamos feito um empréstimo a um banco, a Caixa, coisa nacional, penso que bonificado. O que fez você? Pois foi renegociar essa dívida com um banco árabe, numas condições fantásticas - não pagamos nada durante cinco anos e, depois, vêm os juros a 10 por cento (na Caixa tínhamos 5...). Outro belo negócio...
Conclusão: ficámos sem património para engordarmos as «despesas extraordinárias» e entregámos a gestão de parte fundamental do nosso capital a uma entidade estrangeira com juros que se descontrolarão ao longo dos anos.
Estamos na merda, meu caro MacGuffin. Desculpe-me o linguajar esquerdóide. E só vejo uma maneira de dela sairmos. Insisto na qualificação dos gestores (que ideia foi aquela de contratar um seu conhecido, militante do PSD em Borba, director do centro de saúde local, médico, presumo, e que você insistia ser um craque em recursos humanos?), na adequação do quadro de pessoal à necessidades da fábrica (sugiro-lhe que tentemos uma conversa com o João Proença, que está sempre disponível para estas coisas; talvez o gajo dos TSD que você pôs a chefiar o turno da tarde tenha o telemóvel dele..); e, já agora, com o pouco que temos para investir poderíamos tentar concorrer a uns programas europeus para a divulgação das energias renováveis - tenho uma ideia para vendermos frigoríficos a energia solar para a Líbia que acho uma maravilha. O quê?, a Líbia não. Mas você não sabe das últimas? A Líbia já está no Eixo do Bem, não há problema. Ah, o seu problema é outro... Dá-se mal com a inovação, prefere coisinhas seguras. Pois e o subsídio, uma gaita... Você não gosta de subsídios... Pois, como se não tivesse sido com subídios que, nos anos 80, montou aquele negociozito com que ganhou as massas que investiu no nosso negócio. E o jipe? Não se lembra? Sim, aquele que o meu amigo enchia de «gasóleo verde» numa bomba da Vidigueira...
Fico-me por aqui, caro MacGuffin. Antes que esta minha tendência para pôr tudo em pratos limpos me leve a contar mais duas ou três coisas que sei do nosso negócio...
[PS (quer dizer Post Scriptum, não é o que está a pensar...): quanto aos problemas de gestão, talvez possa começar por ler o que escreve o Tempestade Cerebral.]