O rebanho
Há por aí um filme incómodo. Isto é, um filme com uma visão. Um ponto de vista. Neste caso, a morte de Jesus. Nunca me incomodou especialmente que a arte - um filme é arte, recriação, por muito histórico que pretenda ser - brinque com o real, o reinvente, o ficcione, o molde a seu jeito. Parece-me, de resto, que é assim que as coisas se passam. Com tudo.
No tal filme, um cavalheiro com determinadas inclinações, diria, filosóficas entretem-se a escrever a História a seu modo. Talvez a reescrever, quem sou eu para saber. Diria que está no seu direito. Já vimos este tipo de coisa tantas vezes, já tanta gente fez o que quis com a realidade.
E eis que a indignação estala. Previsível, pavloviana. Dizem-me que a coisa é séria, muito séria, que com ela não será lícito jogar o jogo dos pontos de vista. Que aquilo é mais ódio que mais ódio trará.
Acho que exageram. Cada qual verá ali o que quiser. Cada qual verá ali o que quer. Não é por estar em filme que se torna real. A história ou o sentimento, a opinião, de quem a escreve, quem a conta.
A indignação, assim, em rebanho, faz-me mais confusão que o resto. Essa indignação que apela ao coro, que espreita a dissidência, o mero silêncio, pelo canto do olho. Essa indignação é, ela sim, toda feita de ódio, odiozinho, diria.
Passo os olhos pelos blogues do costume. E a indignação lá está - com excepções, pois claro - nos sítios do costume. Dos que foram pela guerra do Iraque, que gostam de Bush, que aplaudem Israel, que deliram com o muro, e, pois claro, domesticamente são o que se sabe. Essa indignação, assim tão organizadinha, é que me mete impressão. Medo, se fosse de ter medos. É uma indignação de picar o ponto - quantos dos que se indignam viram o filme? -, uma indignação de seita. Logo exclusiva, como quem dissesse: «Quem não disser isto, quem não escrever esta senha, não é dos nossos, e não sendo dos nossos só pode ser mau, só pode estar do lado do mal». É rebanho essa indignação. Puro rebanho.
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