Quando, um destes dias, aqui escrevi que «há muito mais mundo que esquerda e direita» sabia que estava a citar alguém. Só não sabia quem. Acabo de encontrar um texto que li há três semanas e que sintetiza de uma forma cortante o que ando a tentar dizer há muito tempo.
É de Arnaldo Jabor e foi publicado n'
O Globo a 2 de Setembro. Não faço
link porque já não deve estar activo. Publico-o na íntegra para que o leiam e releiam, copiem e imprimem, decorem e colem na parede. E também para que fique aqui para sempre. Para memória futura.
Durante uma horas, largas, nada escreverei. Para que o Jabor respire.
«ESQUERDA» E «DIREITA» NÃO DEFINEM NOSSA POLÍTICA
Arnaldo Jabor
Outro dia, o Lula disse que nunca foi comunista. Nem esquerdista. Contou que o interrogaram na ditadura: “O senhor é comunista?”. “Não, senhor; sou torneiro-mecânico”.
O que os idiotas de plantão não entendem é que esta resposta era a verdadeira novidade da posição política de Lula. O que nos define é o que somos socialmente e não uma ideologia que nos absolva e justifique. Lula nasceu da realidade do ABC e não dos sonhos teóricos dos pequenos-burgueses.
O Brasil está muito complexo e
nem direita nem esquerda esgotam a análise política. A vida social é movida por categorias muito além dessa dualidade. Temos de tudo. Há paranóicos, esquizofrênicos, melancólicos, narcisistas e, descendo mais de nível, temos os burros e uma categoria muito esquecida: os caretas. A caretice, por exemplo, é uma visão de mundo que passa despercebida, mas é raiz de terríveis males.
O careta é antes de tudo um forte. Está sempre atrás de certezas, ou melhor, já chega com elas. Olha o mundo com um olho só e só vê o que já sabia. A diversidade da vida é recusada como um desvio; a dúvida, como fraqueza. O careta tem sempre um sorriso pronto, ou uma cara fechada, dependendo se é do tipo “careta legal” ou “careta severo”. Sua cara é uma careta — daí, creio, o nome — uma máscara fixa que denota uma idéia só, uma mente unívoca.
O careta acha que existe uma conjunção entre si e a natureza. A caretice não é uma posição política; é uma forma de percepção, é um sistema operacional. Ele finge aceitar as diferenças mas não vê o “outro”. O chamado “outro” é para o careta um detalhe da paisagem, um mal inevitável que ele tem de suportar para poder controlá-lo, para o outro não inquietá-lo com surpresas, ou mudanças, seja na politica, no amor ou no sexo. O careta tem princípio, meio e fim, e vive como se não fosse morrer. O careta não sabe da morte, acha que está tão certo que não acaba nunca.
Há caretas de direita e caretas de esquerda. O careta tende mais para o que se chama de “direita”: incapacidade de compaixão pelos fracos, ausência de tolerância. Por outro lado, há muito careta de “esquerda”; esses, no duro, só querem uma sociedade arrumadinha, sem injustiça por uma questão de simetria, para que não sejam assaltados por fatos inesperados e também para se sentirem “bons”, “corretos”, para que não tenham que contemplar seu próprio lado torto ou inexplicável. Existe até o careta drogado, o chamado “muito louco”. De qualquer modo, o careta de direita e o careta de esquerda acabam se encontrando no infinito.
Mas, além da caretice,
há outras modalidades de empatar a vida nacional. Por exemplo: a burrice, que, como dizia Nelson Rodrigues, é uma força da natureza. Nelson viu o óbvio: antigamente, os cretinos se escondiam pelos cantos, roídos de vergonha; hoje, eles andam de fronte alta e peito estufado.
Nunca a burrice fez tanto sucesso. Surge na política a restauração alegre da parvoíce, da imbecilidade, sempre com a sombra da “direita” ou da “esquerda” por trás. Lá fora, Forrest Gump, o herói-babaca, foi o precursor; Bush é seu efeito. Ele se orgulha de sua burrice. Outro dia, em Yale, ele disse: “Eu sou a prova de que os maus estudantes podem ser presidente dos USA”. É a vitória da testa curta, o triunfo das toupeiras.
Inteligência é chata; traz angústia, com seus labirintos. Inteligência nos desampara; burrice consola, explica. O burro atrapalha a vida nacional, retardando processos, escolhendo caminhos tortos. E pior: existe no Brasil a fascinação pela burrice. Está na raiz de nosso populismo de “esquerda”. Muita gente acha que a burrice é a moradia da verdade, como se houvesse algo de “sagrado” na ignorância dos pobres, uma sabedoria que pode desmascarar a mentira “inteligente” do mundo. “Só os pobres de espírito verão Deus”, reza nossa tradição.O bom asno é bem-vindo, enquanto o inteligente é olhado de esguelha. A burrice é “sim” ou “não”.
Na burrice, não há dúvidas. A burrice não tem fraturas. A burrice alivia — o erro é sempre do outro. A burrice dá mais ibope, é mais fácil de entender. A burrice até dá mais dinheiro; é mais “comercial”.
Neste complicado Brasil de hoje, dentro de um mundo louco, há uma grande fome de regressismo , de voltar para a “taba”, ou para o casebre com farinha, paçoca e violinha. Muitos acham que do simplismo, da santa ignorância, viriam a solidariedade, a paz, que deteriam a marcha do mercado voraz, da violência do poder. É a utopia de cabeça para baixo, o culto populista da marcha a ré.
Outro dia, vi na TV um daqueles “bispos” de Jesus de terno-e-gravata clamando para uma multidão de fiéis: “Não tenham pensamentos livres; o Diabo é que os inventa!”.
A burrice é a ignorância ativa, a burrice é a ignorância com fome de sentido. O problema é que a burrice no poder chama-se “fascismo”.
Como subcategorias dos burros, temos também as imensas multidões dos babacas de um lado, comandados pelos boçais, cafajestes e oportunistas.
Temos tantas categorias... temos os egoístas, os complexados, os românticos, os zes-manés, os ladrões compulsivos, os fracassomaníacos , os religiosos de esquerda e direita, os preguiçosos, os chutadores... tantos...
De modo que não podemos nos contentar com a velha dualidade (direita/esquerda); o mundo é muito mais vasto, oh, raimundos e vagabundos... E mais: principalmente no Brasil, não podemos esquecer as fortíssimas divisões, os batalhões que crescem a cada dia, os terríveis exércitos invencíveis, a brilhante plêiade dos FDPs.
[Sublinhados TdN]